19 de abril de 2013

dos relógios que se fundiam como queijos cremosos

Caí no acordar de um sono leve, sem sobressaltos. Sobre mim um cobertor parayba colocado durante o sono, sabe-se lá por quem. Ao redor, um cheiro de molho e de alguma memória que eu deveria ter. E essa sempre mesma queixa de algum sonho esquecido, de mais um abrir-se de olhos que apaga a um tempo o universo de um beijo, de um desmoronamento, de um subir eterno de escadas, de um parente falecido ou do mais lúdico monstro marinho com asas, oras.
E no torpor de um molho e de um sono incompleto, lembrei de um trecho de um livro da infância. A história sem fim. Um clichê sem esforço para quem há muito não se lembra de sonho algum, além daqueles do dia-a-dia que só nos fazem trabalhar mais para atingí-los. Gosto mesmo dos sonhos desinteressados, que não se dão ao trabalho nem ao menos de serem lembrados. Compartilho esse trecho, achado a duras penas pra lembrar de vez em quando que "todo o reino de Fantasia assenta-se sobre alicerces de sonhos esquecidos".

"Atrás da cabana havia uma grande torre de madeira e, por baixo, um poço que conduzia verticalmente às profundezas da terra. Dirigiram-se para lá, atravessando a neve. Bastian viu então imagens sobre a neve, como se fossem jóias preciosas incrustadas em seda branca.
Eram placas muito finas de uma espécie de mica transparente e colorida,de todas as formas e tamanhos, quadradas e redondas, fragmentadas ou inteiras, algumas do tamanho de vitrais, outras pequenas como a miniatura da tampa de uma caixinha. Estavam dispostas em filas na neve, ordenadas de acordo com o tamanho e a forma, e as filas eram tão compridas que se estendiam até o horizonte da grande planície branca.
Essas imagens eram enigmáticas. Havia figuras disfarçadas que pareciam flutuar num grande ninho de pássaros, burros com togas de juizes, relógios que se fundiam como queijos cremosos, ou ainda marionetes em praças iluminadas onde não havia ninguém. Havia rostos e cabeças constituídos por figuras de animais e outros que formavam paisagens. Mas havia também imagens normais, homens que ceifavam um campo de trigo e mulheres sentadas numa varanda. Havia aldeias alpestres e paisagens marinhas, cenas de guerra e espetáculos de circo, ruas e quartos, e novamente rostos, velhos e novos, inteligentes e idiotas, de loucos e de reis, tristes e alegres. Havia imagens aterradoras, de execuções e danças macabras, e imagens alegres de jovens damas, cavalgando um cavalo marinho, ou de um nariz que passeava sozinho e era cumprimentado por todos os transeuntes.
Quanto mais passeavam ao longo das imagens, menos Bastian compreendia o seu significado. Só percebia uma coisa: havia nelas tudo o que existia, se bem que por vezes numa estranha combinação. Depois de ter andado durante muitas horas ao lado de Yor e ao longo das filas de imagens, o crepúsculo caiu sobre a extensa planície nevada. Voltaram para a cabana. Depois de ter fechado a porta, Yor perguntou em voz baixa:
— Você reconheceu alguma?
— Não, replicou Bastian.
O mineiro balançou pensativamente a cabeça.
— Por quê?, quis saber Bastian. Que imagens são aquelas?
— São os sonhos esquecidos do mundo dos homens, explicou Yor. Depois de ter sido sonhado, um sonho não pode desaparecer. Mas quando o homem que o sonhou o esquece, para onde vai? Vem para cá, para junto de nós, em Fantasia, e fica enterrado nas profundezas da terra. É ali que estão os sonhos esquecidos, em camadas muito finas dispostas umas sobre as outras.
Quanto mais fundo se cava, mais espessas são essas camadas. Todo o reino de Fantasia assenta-se sobre alicerces de sonhos esquecidos."