17 de dezembro de 2017

nota da autora

Aos visitantes, recomendo cautela na leitura destes pensamentos.
Todo eu-lírico é cartesiano na medida em que compreende seus eixos a cada cálculo, e é pelos eixos que o desenrolar das palavras se dá. Mas a razão de um eu-lírico ao eu-lírico pertence.

A expressão é ficcional, por si. Não há ali pretensão de traduzir qualquer realidade, mas de reconfigurá-la em outro formato, para que seja possível a ver com distância e assim conseguir falar sobre ela. Só com espaço as palavras se movimentam.

A expressão do espírito é ficcional porque a realidade às vezes é fétida e horrenda. 
(Ficcionalizar o fétido e horrendo é descrever um pântano e suas brumas, seu lodo que penetra as meias e os orificios todos, é sentir no enxofre o cheiro do diabo e acreditá-lo ali) Mas não só. A expressão do espírito é ficcional porque a realidade é de fato poética, inclusive no que há nela de podre - talvez principalmente pelo que há nela de podre. 

E sobre a inconstância, volto aos eixos. Não há ser humano que ande em linha reta. Os pensamentos e emoções são equações complexas que geram no espaço e no tempo curvas ao mesmo tempo próximas e imensuravelmente distantes da noção de infinito bem como das abcissas e ordenadas e de tudo aquilo que é reconhecível.

Este blog não pretende ser verossímil, constante, uníssono, pois nenhuma vida o é. Aqui há lacunas, há saltos, há tombos, há supernovas e buracos negros. E há também o movimentos sutil das nuvens que se aproximam há horas desta janela, e dos goles d'água que dou enquanto tusso uma bronquite crônica e sem sossego. Há o cortante da minha dor que afasta e machuca, e há pedidos de desculpa e erratas que o silêncio me traz como inspiração. Há amor, muito amor, e todo o cansaço que dele vêm. Há saudades e suas variantes. Há escritos de quem acaba de se tocar, bem como escritos de quem precisa escrever sobre a ausência do toque desejado.

Há aqui o complexo de uma vida, e este não deve ser lido ao pé da letra, mas nas letras que os pés escrevem.



20 de novembro de 2017

o gato de schrödinger

- nossa história acabou não é uma boa coisa
- que história
- a nossa, aquela sem testemunhas
- essa história nem aconteceu
- já parou pra pensar que todo dia nublado é uma página em branco
- conta a história
- era uma vez uma mulher que andava por um caminho bonito quando de repente 
- não gosto dessa conta aquela bonita da moça que voa
- quando de repente viu um lago ou um açude não sei como chamam aqui em são paulo e foi se banhar
- ficou pelada na frente de todo mundo sabe que a primeira coisa que a gente olha são os peitos né
- enquanto ela tomava banho ela falava com os orixás porque ela acreditava nessas coisas
- e aí
- aí que sempre que ela falava com os santos dela ela perdia alguma coisa porque se distraia achando que uma marolinha já poderia ser um aval do santo pra ela seguir fazendo besteira, nisso um homem surgiu e ficou olhando ela de longe por muito tempo
- também
- ele tinha um olhar de tarado mas ficou encantado foi com o canto da mulher, que canto de mulher quando acha que não está sendo observada por um homem é muito mais bonito
- como sabe que ele se encantou
- não sei e ninguém sabe, faz parte das premissas da nossa história que acabou
- ele pode só ser um cara que gosta de olhar de longe, não tem mal nisso
- ele achou as roupas dela e escondeu. foi ficando tarde, a mulher foi se vestir, não achou as roupas e chorou, não queria ficar pelada assim pra sempre, só bastante, de vez em quando
- cheiro de mulher é um negócio que mexe com a gente
- o homem apareceu e disse que devolveria as roupas se a mulher abdicasse da própria vida e fosse viver com ele, li num livro que isso sempre acontece, do homem ver a alma e querer tomar pra si porque faz falta
- ela foi? 
- ele disse meu sonho é deitar com você na grama olhando pro céu, ela achou aquilo bem bonito e foi. foi com ele. mas foi uma noite longa muito escura que durou mais de ano e só ele conhecia o caminho. não tinha pressa de chegar porque gostava da companhia dela mas andava sempre à frente, como se quisesse a despistar às vezes. depois voltava pra perto pra garantir que aquela alma tinha dono e sumia de novo finais de semana inteiros durante a caminhada. foi num sábado dessa noite longa que ele esqueceu de dizer que tinha um precipício beirando o caminho inteiro, então ela caiu
- morreu?
- aprendeu a voar quase no chão, lembrava da técnica de encher os pulmões pra flutuar na piscina e acabou funcionando naquela atmosfera romântica que tinha encontrado desde que foi possível encontrar um lago limpo pra se banhar na cidade de são paulo
- essa a parte bonita, a que ela voa. 
- dizem que o homem não achou isso, ou achou. porque ele sentou na beira do precipício por anos com a boca entreaberta sem conseguir emitir um som. virou pedra do rochedo, marco pros turistas não se perderem durante as trilhas. dizem que sofreu e dizem que não sofreu também. dizem que uma vez viram uma lágrima rolar na bochecha mas aí viram que só tinha começado a garoar mesmo. ganhou até nome: o dono da alma que voa
- e ela
- não sabia pra onde voltar, ninguém pedia pra ela ficar então ela seguiu voando. às vezes gritava pra que soubessem por onde voava, coisa muito vulgar de gente muito carente. mas não tinha nem eco porque são paulo tem prédios demais. demorou um tempo, mas uma hora ficou rouca e se calou, é difícil sentir por dois por tanto tempo mas é mais difícil sentir por uma pessoa só assim, sem ser ouvida nem procurada. e aí acabou, a nossa história acabou. é uma coisa boa, eu acho
-
-
-
- o tempo passa mais devagar no silêncio, mas uma hora passa, é o que o ele faz de melhor
- adeus
-
-
- antes diz a verdade, ela caiu ou voou?
- a pergunta certa é: ele olhou pro chão ou pro céu quando ela sumiu?

30 de outubro de 2017

de quando se acorda

A grande cidade acorda aos sons da pressa e dos acidentes em vias expressas. Das máquinas de corte e solda. É o que ouvem as pálpebras ainda pesadas e difusas que convencem a permanência no solo seguro da cama. Mas se há qualquer esperança, é possível ouvir cantos de pássaro e o fluxo de carros por sobre as emendas do asfalto como uma espécie de sequência de ondas em uma praia. É necessário sonhar em pé.

6 de outubro de 2017

#15 ação para uma mulher voltar

Entender a expectativa como uma sala vazia e limpa, de portas e janelas abertas. Lá fora vê-se um campo aberto, bonito. Tudo o que entra não se espera e é bem vindo, mesmo que pixe as paredes por dentro e suje o chão com pegadas de lama. As janelas abertas permitem que uma revoada de pássaros atravesse a sala no fim da tarde.
Não esperar o bom das coisas, nem o ruim das coisas. Não olhar a paisagem só nas noites escuras e sem lua.
Não esperar.

#14 ação para uma mulher voltar

Uma mulher deve tomar sol enquanto ouve alguma música - dos fones, dos passos, do trânsito, do vento que bagunça os cabelos. Essa mulher deve cantar junto, em homenagem à Ícaro e suas asas de cera.

#13 ação para uma mulher voltar

Uma mulher deve conseguir, em algum momento, distinguir o doce do azedo, do ácido e do amargo. É imprescindível compreender que adoçar as coisas não faz com que elas se transformem em outras coisas. Assim para as limonadas e cafés, assim para as promessas não feitas. Essa mulher deve perceber que o amargor dura mais na boca, dura o tempo que tem que durar.

#12 ação para uma mulher voltar

Uma mulher deve tomar um banho gelado, mesmo que sob o pretexto de uma resistência queimada. Desse modo essa compreende um pouco mais sobre as próprias resistências.

#11 ação para uma mulher voltar

Uma mulher deve tomar um banho bem quente e se sentir abraçada ali, no molhado. Desse modo a mulher escalda os pensamentos gordurosos que insistem em grudar em suas superfícies.

#10 ação para uma mulher voltar

Perceber e receber o cru da vida. A crueza das coisas, a forma bruta das relações.

#9 ação para uma mulher voltar

Não alimentar esperanças.
Não alimentar esperanças.
Não alimentar esperanças.
Não alimentar esperanças.
Não alimentar esperanças.
Não alimentar esperanças.

#8 ação para uma mulher voltar

Manter a todo custo os olhos em pé. Mesmo que tudo mais ceda. os olhos devem se manter acima do nível das lágrimas para que a visão não se turve. Devem voar e vigiar, incessantemente.

#7 ação para uma mulher voltar

Uma mulher deve usar as mãos. Ocupá-las e mantê-las ocupadas. De pele, tinta, sabão, grama ou ar corrente.

#6 ação para uma mulher voltar

Morrer eventualmente não é o aval necessário para agir sem controle das próprias ações, para muito além da familiar saturação, para o trasbordamento. Tudo o que vaza por entupimento não tem pra onde escoar e vira lodo.

#5 ação para uma mulher voltar

Em caso de abstinência do silêncio de um outro, lembrar que não se está vivo porque o outro está vivo. Felizmente estamos vivos porque respiramos e morremos eventualmente.

#4 ação para uma mulher voltar

Permitir que a vida se comunique sem caracteres. Esquecer o celular em casa para não esquecer a casa pelo celular. Evitar os gestos mecânicos que encalacram pensamentos.

#3 ação para uma mulher voltar

Um coração partido é uma argila seca. Um pouco de água e mãos deveriam ser suficientes para fazê-lo voltar.

#2 ação para uma mulher voltar

Na vinda do que vem de fora, daquilo pelo qual tanto se espera mas que chega em rasas ondas, esporádicas e pequenas, às vezes poluídas - aqui me refiro ao amor ou ao que um coração anseia - sentir as ondas nos pés. E deixar-se afundar pelos pés só até que ainda se consigam ver seus dorsos. É necessário sempre manter os pés sem peso demasiado.

#1 ação para uma mulher voltar

Entender-se completa por si, não pelo que vem de fora, quando vem de fora.

bicho

a estranha sensação da vida pertencer mais aos outros do que a mim
e o esforço contínuo de tomar pra mim, tomar pra mim
tomar pra mim o que deveria ser meu
como os passos que eu dou, a princípio
e os olhares que fogem de mim apesar de quererem olhar

e aquele que foge nem percebe que o bicho que se teme está preso em jaula, sem apetite
fraco para rugir
e se solto, provável que não causasse nada ao mundo além de pesadas pegadas
que assim acuado, preso, cutucado às vezes com vara de ponta aguda pra se lembrar de sentir qualquer coisa, assim ele parece uma ameaça
assim como aquele bicho que cutuca - este dono de uma vara, e da paz de grades de ferro que ele mesmo construiu para a proteção do seu mundo
ou para o atrofiamento do mundo do outro

16 de agosto de 2017

capítulo dois - disjuntor


(pisca a luz)
ALGUÉM QUE OLHA PARA BAIXO - Você viu isso?
ALGUÉM QUE OLHA PARA CIMA - Sim.
ALGUÉM QUE OLHA PARA BAIXO - O sol piscou.
ALGUÉM QUE OLHA PARA CIMA - Deve ter sido uma nuvem rápida.
ALGUÉM QUE OLHA PARA BAIXO - Não, não. Fez CLEC.
ALGUÉM QUE OLHA PARA CIMA - Um avião caindo então.
ALGUÉM QUE OLHA PARA BAIXO - Aí só viria um clarão bonito, um bafo quente, não um
apagão.
ALGUÉM QUE OLHA PARA CIMA - Hum. A gente pode ter piscado ao mesmo tempo.
ALGUÉM QUE OLHA PARA BAIXO - Caiu a chave.
ALGUÉM QUE OLHA PARA CIMA - O que?
ALGUÉM QUE OLHA PARA BAIXO - O disjuntor. Desarmou.
ALGUÉM QUE OLHA PARA CIMA - O que?
ALGUÉM QUE OLHA PARA BAIXO - Olha ali na rua as pessoas olhando pra cima. O disjuntor desarmou. Caiu a energia. Mexeram nos fios, sei lá. Deus perdeu o controle, foi isso. Deus falhou.
ALGUÉM QUE OLHA PARA CIMA - Calma, calma.
ALGUÉM QUE OLHA PARA BAIXO - Olha ali na rua, as pessoas se ajoelharam, olha. Olha ali, aquela senhora chorando e pedindo perdão. Olha ali as pessoas saqueando o açougue, ó! Ó. Agora saquearam a senhora, ó! Olha ali as pessoas filmando a senhora ser saqueada, ó. Olha ali, as pessoas amontoadas na porta da universal do reino de deus sem poder entrar, olha ali! Ouve, ouve. Tá ouvindo as trombetas? Olha lá, mataram a senhora.
Mataram a senhora. Olha ali aquele moço fazendo um cartaz. Tá apontando pra cá, ó. Não dá pra ler. Não dá pra ler! Moço, não dá pra ler! Olha aí os quatro cavalos, ó! Chegaram.
Olha ali as pessoas fugindo de carro ó. Atropelando as outras. Olha ali. Olha ali aquelas achando que não tem pecado, ó, que agiram bem em vida, ó! Não! Eu não paguei o aluguel! Deixa eu pagar o aluguel, deixa? Ai eu fico pronto. Só deixa eu pagar o aluguel que eu fico pronto.

15 de agosto de 2017

O cansaço do tempo ou o canto de amor e luta dos ventos. Me diga o que vê entre as pessoas e te direi quem és. Simples assim.

29 de julho de 2017

escritos antigos 1

O amor não é uma paixão, definitivamente. Não cheira à flor murcha, quase seca e nem tem o gosto das amêndoas amargas das paixões. O amor cheira à terra. É o solo das raízes, é a própria raiz. Pode ser encontrado facilmente: um farol numa maré baixa. A paixão se localiza bem mais distante da crista das ondas, abaixo, profundo, a paixão é o que move as ondas do dia seguinte.
Talvez assim: Os amores se dão nos pés, no chão fofo que cheira à vida. As paixões se dão nas abissais ocêanicas cuja aparência desconhecemos. É tudo uma questão de se olhar pro elemento.

escritos antigos 2

A depressão é algo como não desejar levantar, ainda que se deseje o resto, a todo momento. Algo como dizer que dia lindo e não ter vontade de sair. De comer. De abrir os lábios. A depressão é a própria sensação geofísica de um vale. Um lugar de onde nada se ouve ou vê, mas para onde tudo se ouve e vê. A depressão tem a ver com o que cai. Uns goles numa garganta, uns joelhos numas calçadas, umas lágrimas roladas, uns sais a mais numa comida que deveria ser doce, uns olhos atentos que afundam... todo um espírito que pesa no corpo como roupa encharcada depois da chuva.

8 de julho de 2017

attend to the bones

quando o espírito caleja é preciso voltar à pele
redescobrir as superfícies do mundo, dos homens, de mim

deixar ver, deixar ser vista
e sentida em minha composição primeira
que é pele, calor e sal

é necessário ser toda pele, e não mais que pele

16 de maio de 2017

um pouco mais contemporânea que de costume

às vezes também me cansam os arcaísmos em que me meto
e em que meto os outros
queria ser menos antiga 
menos dada aos floreios e aos barroquismos daqueles que gostariam de ter sido
como aqueles poetas parisienses que morriam de tuberculose depois de muito conhaque
e tropeçavam em paralelepípedos 
enquanto evidentemente contribuíam muito para as artes modernas
ou só bebiam mesmo e daquelas sarjetas surgia um verso com gosto de cerveja velha

ser romântica me meteu em muitas encrencas
encrenca é sim uma péssima palavra
mas estou treinando isso em mim de parar de não gostar de algumas palavras
de ser mais direta
menos melindrosa
menos labiríntica
mais cheiro de cerveja velha e menos notas de aroma de qualquer coisa
encrencas servem a esse propósito

graças a deus ninguém é só uma coisa
eu tenho um quadro do batman, um buda de resina e um furby miniatura
eu coleciono memes e converso com plantas
- ou peço desculpas por nunca regá-las, é a vida -
eu dublo meus gatos em suas discussões avant-guarde
sobre a marcha lenta dos movimentos revolucionários dos humanos
eu danço entre aspas um belo hip hop na cozinha
e de vez em quando penso coisas mais complexas
como por exemplo que qualquer janela conta uma pequena história

assumo aqui algumas das minhas contradições:
sou atriz
mas gostaria de ganhar dinheiro
sou contraventora
mas odeio ser demitida
me desculpo e dou desculpas
mas confio no meu taco
tenho problemas 
mas sei apreciar uma lua cheia
sou romântica
mas faria um perfil no tinder
sou muito adulta
e muito pateticamente infantil
sofro e sofro e sofro
mas gosto de tomar chuva e me molhar por inteiro 
te amo e te odeio e coisa e tal

ser romântica é o que me deixa assim meio fora do mundo
e ao mesmo tempo o que me situa no chão
o que me faz sentir a terra entre os dedos
o oposto disso eu nem sei o que é 
acho que o antônimo de romântico é o realista
mas o que há de real naquilo que é o que é?
que pena ser o que é, ter o nome que se tem
"o que chamamos rosa, 
sob uma outra designação teria igual perfume"
prefiro acreditar que o mundo é mais, 
que as pessoas são mais
- não só do que os outros dizem que elas são -
que são mais do que elas mesmo acreditam que sejam
- afirmam que sejam -
prefiro acreditar que as palavras geram mundos outros
em que podemos habitar 
e onde habitamos até que o teto caia
prefiro acreditar que palavras não são moeda de troca

eu queria ser menos rococó
queria não ter os impulsos e arrependimentos de alguém de 15 anos 
queria não dar esses passos em falso que me destroem
ou que me fazem escorregar de maneira imbecil e pública
queria ser realista a ponto de entender as fronteiras do desejo 
mas é sendo romântica que eu entendo a vida
então tudo bem ser assim, eu acho

17 de abril de 2017

errata

assim como é necessário abrir todas as portas e deixar as correntes de ar trazerem toda poeira pra dentro, também é necessário cerrá-las com mil chaves como um ato de liberdade
e vice versa

explodir as pontes e fechar as pistas de pouso até essa minha ilha
parece razoável
para que eu veja o mar com mais clareza
e para que aportem os que de fato querem aportar

11 de abril de 2017

Mafalda me sopra algo

Entre 
"Mafalda se apaixonou pelo passado, casou com sua memória e mesmo com 79, morreu aos 14"
e
"Mafalda foi boa esposa, mãe e avó" 
há uma distância tão grande.

A morte já é um vento que deixa de ventar sem aviso. A quem sentia o vento faltam de repente seus cheiros, os pêlos arrepiados e às vezes as palavras, e a quem não o sentia, bom, a estes não falta nada.
(Eu nunca poderia ser redatora de epítáfios. Acabo de descobrir isso.)
Uma faixa numa coroa de flores comporta tão pouco de uma existência. Da pessoa, sua função, algum afeto, alguma saudade, e só. Seria preciso pregar um pergaminho inteiramente escrito em fonte 8 frente e verso numa coroa de clores para que algo de alguma existência fosse contemplado. Das coroas eu nem me arrisco a comentar, grotescos arranjos redondamente artificiais de todas as flores já mortas disponíveis na floricultura superfaturada em frente ao cemitério. 

Mafalda foi minha avó, mas antes de ser minha avó, Mafalda foi mulher.
E hoje lembrei de minha avó porque pensei em paixão. 
Hoje pensei que a vasta maioria dos textos que escrevi aqui era sobre as paixões que me faziam tremer (de dor, de prazer), e como isso pode ser cansativo pra quem não vê a vida por esse prisma.
Pensei que gostaria que meu epitáfio me reduzisse à "uma pessoa que se apaixonou" - e em seguida voltei a lembrar de minha avó e percebi minha pretensão. Minha avó sim,"uma pessoa que se apaixonou", e só.

Minha avó se apaixonou por um jovem estudante de medicina num ponto de ônibus quando tinha 14 anos e nunca o esqueceu. Foram algumas palavras trocadas. Se despediram e ela não o viu por quarenta anos. Casou-se, teve filhos, enviuvou, abriu vários bares e sobreviveu às suas falências. Aos 55 anos marcou uma consulta com o médico que encontrou no ponto de ônibus. Perguntou se ele lembrava dela, ele fez que não com a cabeça. Ela pagou a consulta e saiu. Seguiu. Um dia começou a matar formigas onde não havia formigas e chamar pessoas que já haviam morrido. Teve alzheimer, escleorose múltipla, vegetou. Antes de calar, às vezes chamava alto o nome do Dr. Carlos entre um espasmo e outro.


Paixão.
Se apaixonar para algumas pessoas pode ser tudo o que há.
Isso é delicioso e terrível. Uma paixão sem realização é como um vento que alguém não sente.
E como o maior medo da paixão é não ser lembrada (como minha avó naquele consultório) lanço aqui um punhado de hipóteses pessoais sobre ela, por pura pretensão de achar que é possível definí-la - e aqui estou escrevendo os epitáfios da paixão embora não seja minha intenção enterrá-la tão cedo. Sobre ela:

Pode se parecer com se manter na beirada de uma grande altura e ter a sensação de que o chão é seguro.

Pode ser como a própria queda. A sensação de que os órgãos flutuam dentro do corpo durante uma queda livre. (Ainda que meu parâmetro de queda seja o Hopi Hari e suas travas de segurança - essa queda outra não tem a ver com segurança)

Ou, mais concreto, talvez se apaixonar seja já estar no chão. Não há além. Talvez seja sentir que a imensa gravidade só não retém os pensamentos, mas é o que nos ajuda a mensurar o peso dos corpos sobre o nosso corpo. É tremer como a terra treme e depender da mesma terra se o caso for de cair. É se deixar cair, se deixar doer, se deixar sujar. É um encontro de dois corpos que anseiam pelo encontro - e não sabem o que fazer dele.


6 de abril de 2017

O tanto que acontece no entre.

27 de março de 2017

vergalhão de 1,56m

Algo de ver uma parede se erguendo em sua interioridade bruta me fala sobre a minha própia estrutura. Também eu sou feita de tijolos ocos que quando não cabem num lugar são fragmentados e às vezes despedaçam inteiros, também eu sou feita da pasta cinza de cimento pedra e água mal misturados, também eu me mantenho em pé por um vergalhão de ferro em processo de oxidação. Também eu causo a poeira grudenta de uma reforma necessária.
Mas isso tudo é poesia. Tudo isso é atribuir nobreza demais pra confusão desta mulher.

(E poeta mesmo é o pedreiro.)




17 de março de 2017

às minhas

As mulheres da minha família tem o toque liso de digitais gastas das lavagens à mão. É na falta das mesmas digitais que elas existem tão plenamente.
Sempre achei que as mãos trabalhadoras eram aquelas ásperas, duras, de juntas agudas; Eram as mesmas donas das mãos lisas que me diziam isso enquanto apalpavam as minhas mãos de menina. Não lembro de ter conhecido mãos mais macias que as de minha mãe e de minhas avós, e hoje leio - presencialmente ou em visitas à memória - suas existências complexas, penosas e de bravas lutas nas tantas linhas das palmas das mãos. Um tecido amarrotado de linhas, de rugas formadas pelos apertos de terços e ramos de arruda dos momentos de aflição, ou apenas dos sulcos dos caminhos feitos ou não feitos da vida que encontram abrigo ali.
Há algum tempo me sinto sem densidade, volátil. Vulnerável a qualquer vento mais forte que me dissipe pra qualquer atmosfera. Nesse tempo senti saudades dessas mulheres. Que a força delas estava na leveza de seus passos e mãos, e era ela que mantinha o mundo todo em ordem, as pessoas todas presas ao chão. Essas mulheres eram a terra, o subterrâneo de tudo, tudo aquilo que existe antes de qualquer movimento. Assim são as mulheres.
Me reuni no quintal da casa da família com minha irmã e minha mãe. Nunca antes estive tão vulnerável na presença delas. Qualquer olhar de sombrancelhas mais arqueadas era capaz de me derrubar num surto de lágrimas. Olhos baixos da vergonha de estar vazia da força das minhas ancestrais, da beleza do mundo, da capacidade de vencer qualquer tempestade como a terra que sucumbe, erode, estala e ainda assim germina e serve de chão. Minha irmã me encorajou a tirar cartas de um baralho de tarô. Leu o que elas diziam em voz baixa a pedido de minha mãe.
Leu ali o que me pareceu uma fenda na armadura que eu tinha construído pra mim.
Em seguida, minha mãe recolheu um ramo de arruda e trouxe um prato branco com água e uma colher com um pouco de óleo até a mesa. Me pediu olhos fechados. Rezou as palavras de minha avó paterna num murmúrio indecifrável enquanto fazia sinais da cruz ao meu redor. A cada sequência de orações parava por instantes, molhava um dedo com o óleo e esperava uma gota cair naturalmente no prato com água. Tornava a repetir. Arruda, óleo, água. Arruda, óleo, água.
Estavam ali as minhas origens, o meu chão.
Estava ali a minha densidade, a minha natureza.
Minha mãe se preocupou como mãe que é, e falou baixo sobre o porque havia repetido a benção tantas vezes. Enquanto ela falava baixo eu percebi que não era da benção o que eu precisava, mas desse silêncio outro, tempo outro, desse cheiro outro, desse toque liso que trazia minhas antepassadas para uma breve visita. Ela falava baixo porque temia que os vizinhos escutassem. Falava numa voz ainda mais grave pelo volume baixo e aquilo era como se alguma música antiga tocasse em mim.

Me senti junto às minhas. E isso já era o necessário para seguir.

um temporal

Ontem, e isso já faz um ano, me olhei no espelho e vi ali uma mulher. Não sei o quanto isso pode ser compreendido por quem me lê de fora ou pelo meu próprio eu de qualquer futuro, mas preciso registrar que esta citada distância entre eu e eu é imensa. De menina a mulher, um mar, um acidente geográfico, uma inversão dos pólos magnéticos. Não se deu assim num estalo, nada na natureza - e portanto, na mulher - acontece dessa forma, a não ser que se pisque tão demoradamente até perceber um novo outono como o mesmo (isso só ocorre nos casos extremos da paixão).
Não, não me sinto no mesmo lugar. No mesmo tempo. O espelho me mostra um rosto que aprende a ceder à gravidade das coisas, que aprende não sem medo a aceitar sua queda. Fora do meu reflexo, minha distância de menina a mulher foi percorrida por céu e terra.
Se tudo se passou aqui, neste apartamento, foram então as nuvens lá de fora que se formaram rapidamente num céu quente e vaporoso, e então descoloriram o grande azul e de brancas se tornaram cinzas e então quase negras, e nesse momento começaram suas corridas de mil ventos, um ou outro deles assobiando pavorosamente pela fresta da janela deste aqui. Toda uma iminência de algo, tudo um algo prestes a suceder. Chuva que salpica o amianto até ele também ser inteiro molhado como o céu e os pés e o meu espírito. Chuva sem direção, de todas as direções, granizo  eo barulho do choro empredado, ensurdecedor; céu e terra brancos e duros. (Daqui eu procurava também endurecer para não escoar ou evaporar)
E então o mundo foi se acalmando, compreendendo melhor o seu ciclo e permitindo que as pessoas recomeçassem os seus. Algum silêncio se instaurou, alguma paz. Há telhas caídas, árvores tombadas nas ruas, alguns acidentes de trânsito, roupas encharcadas nos varais - mas o nome disso é paz.
É aí que me reconheço agora. Mantendo a calma apesar das sirenes e alarmes disparados pelas pedras de gelo.

A duração do processo de tornar-me mulher é um temporal.

pequena carta sem remetente a um destinatário anônimo


o nosso é um caso típico da física e da química. um centímetro teu percorre quilômetros em mim, tem o impacto de uma pane elétrica e ao mesmo tempo que me dissolve me faz lembrar que há vida aqui.
pulsante, vibrátil, corrosiva.