11 de abril de 2017

Mafalda me sopra algo

Entre 
"Mafalda se apaixonou pelo passado, casou com sua memória e mesmo com 79, morreu aos 14"
e
"Mafalda foi boa esposa, mãe e avó" 
há uma distância tão grande.

A morte já é um vento que deixa de ventar sem aviso. A quem sentia o vento faltam de repente seus cheiros, os pêlos arrepiados e às vezes as palavras, e a quem não o sentia, bom, a estes não falta nada.
(Eu nunca poderia ser redatora de epítáfios. Acabo de descobrir isso.)
Uma faixa numa coroa de flores comporta tão pouco de uma existência. Da pessoa, sua função, algum afeto, alguma saudade, e só. Seria preciso pregar um pergaminho inteiramente escrito em fonte 8 frente e verso numa coroa de clores para que algo de alguma existência fosse contemplado. Das coroas eu nem me arrisco a comentar, grotescos arranjos redondamente artificiais de todas as flores já mortas disponíveis na floricultura superfaturada em frente ao cemitério. 

Mafalda foi minha avó, mas antes de ser minha avó, Mafalda foi mulher.
E hoje lembrei de minha avó porque pensei em paixão. 
Hoje pensei que a vasta maioria dos textos que escrevi aqui era sobre as paixões que me faziam tremer (de dor, de prazer), e como isso pode ser cansativo pra quem não vê a vida por esse prisma.
Pensei que gostaria que meu epitáfio me reduzisse à "uma pessoa que se apaixonou" - e em seguida voltei a lembrar de minha avó e percebi minha pretensão. Minha avó sim,"uma pessoa que se apaixonou", e só.

Minha avó se apaixonou por um jovem estudante de medicina num ponto de ônibus quando tinha 14 anos e nunca o esqueceu. Foram algumas palavras trocadas. Se despediram e ela não o viu por quarenta anos. Casou-se, teve filhos, enviuvou, abriu vários bares e sobreviveu às suas falências. Aos 55 anos marcou uma consulta com o médico que encontrou no ponto de ônibus. Perguntou se ele lembrava dela, ele fez que não com a cabeça. Ela pagou a consulta e saiu. Seguiu. Um dia começou a matar formigas onde não havia formigas e chamar pessoas que já haviam morrido. Teve alzheimer, escleorose múltipla, vegetou. Antes de calar, às vezes chamava alto o nome do Dr. Carlos entre um espasmo e outro.


Paixão.
Se apaixonar para algumas pessoas pode ser tudo o que há.
Isso é delicioso e terrível. Uma paixão sem realização é como um vento que alguém não sente.
E como o maior medo da paixão é não ser lembrada (como minha avó naquele consultório) lanço aqui um punhado de hipóteses pessoais sobre ela, por pura pretensão de achar que é possível definí-la - e aqui estou escrevendo os epitáfios da paixão embora não seja minha intenção enterrá-la tão cedo. Sobre ela:

Pode se parecer com se manter na beirada de uma grande altura e ter a sensação de que o chão é seguro.

Pode ser como a própria queda. A sensação de que os órgãos flutuam dentro do corpo durante uma queda livre. (Ainda que meu parâmetro de queda seja o Hopi Hari e suas travas de segurança - essa queda outra não tem a ver com segurança)

Ou, mais concreto, talvez se apaixonar seja já estar no chão. Não há além. Talvez seja sentir que a imensa gravidade só não retém os pensamentos, mas é o que nos ajuda a mensurar o peso dos corpos sobre o nosso corpo. É tremer como a terra treme e depender da mesma terra se o caso for de cair. É se deixar cair, se deixar doer, se deixar sujar. É um encontro de dois corpos que anseiam pelo encontro - e não sabem o que fazer dele.


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