24 de fevereiro de 2013

Maria José, 123

O lado de fora da casa de um velho tem mais cores.
Pela ausência da catarata, talvez. Pelos olhos de quem ainda não os têm opacos, daquela cor acinzentada que só olhos velhos têm.

De fora da casa de um velho, há gente colorida, há casas antigas pintadas pela prefeitura pra valorizar o bairro tradicional, há crianças jogando uma bola amarela, há um cheiro de pão recém saído do forno, há um gosto de cerveja choca no bar da frente, há o batuque do terreiro lá de trás, há uma calçada sem vagas para mais carros - estes sim, pretos e pratas, apenas -, há mulheres de cabelos feitos - não sem um ou outro fio espigado pra cima, esse clima anda terrível - saindo dos muitos salões ao redor, há alguma briga acontecendo num apartamento por ali, há um velho que, sorrindo, espia a rua duma janela.

De dentro da casa de um velho, há poucos vizinhos que o viram sem cabelos brancos vivos, há o barulho de relógio de corda, um cheiro de velhice na cristaleira, há espelhos cobertos, há um ou outro cumprimento de cabeça com os conhecidos que passam, há um sorriso constante nos lábios, não há tanto cheiro, não há tanta cor, não há tanto sentido nas coisas e nas pressas de quem passa, não há espaço para jogarem bola com todos esses carros - a prefeitura deveria fazer alguma coisa, há sempre lixo remexido na frente também -, há uma porção de gente temporária, há o pãozinho que a vizinha trouxe pensando na espinhela caída, há um suspiro longo que dói de vez em quando e há aquela menina que, curiosa,  sempre anda no outro lado da rua olhando em sua direção.

Um dia ela descobre que não há pernas que aguentem todas essas cores do lado de fora.

16 de fevereiro de 2013

num mês

isso de ser livre
e de ter que pagar o aluguel
de transar em casa
e viver de desencontros
isso de ansiar
de esperar mesmo assim
isso de não se importar
e de fingir que não se importa
isso de apreciar a vista
e de sentir que é vasta demais

vai desgastando
vai perdendo a tinta
vai me arrastando pro fim da noite

é a cota do dia.

meu bem, meu bem

eu  paro no eu
que desgraça parar aí sempre
neste pronome mais recorrente que o seu
mas que vem sempre acompanhado do com
com você, com outro qualquer
foi nisso que eu me peguei diante da janela
fumando meus cigarros
(que eu comprei pela primeira vez, junto com um isqueiro preto)
e tragando um pronome que não existe na norma culta
tragando você
sem a pressão baixa que o cigarro sempre traz
só com
só com o aperto no peito que a fumaça causa
e os pronomes que a véspera faz pensar
no eu, no eu,
jesus, eu sou egoísta
mas de ego em ego eu vou me curando de ti
ou repudiando o ti porque não sou gaúcha
e piorando a minha bronquite.

9 de fevereiro de 2013

uma radial leste de carnaval

num fechar de olhos a quebra da onda, o aspirar do vento, a rebentação caprichosa, a calmaria da água reversa
os pés afundando
o calor desses de quando não se precisa de ninguém

num abrir de olhos a porta fechada, o barulho de pneus confeitando a água de chuva no asfalto, quilômetros inteiros sendo completados à altura dos olhos
os pés doendo
o calor desses de quando não se precisa de ninguém