27 de março de 2017

vergalhão de 1,56m

Algo de ver uma parede se erguendo em sua interioridade bruta me fala sobre a minha própia estrutura. Também eu sou feita de tijolos ocos que quando não cabem num lugar são fragmentados e às vezes despedaçam inteiros, também eu sou feita da pasta cinza de cimento pedra e água mal misturados, também eu me mantenho em pé por um vergalhão de ferro em processo de oxidação. Também eu causo a poeira grudenta de uma reforma necessária.
Mas isso tudo é poesia. Tudo isso é atribuir nobreza demais pra confusão desta mulher.

(E poeta mesmo é o pedreiro.)




17 de março de 2017

às minhas

As mulheres da minha família tem o toque liso de digitais gastas das lavagens à mão. É na falta das mesmas digitais que elas existem tão plenamente.
Sempre achei que as mãos trabalhadoras eram aquelas ásperas, duras, de juntas agudas; Eram as mesmas donas das mãos lisas que me diziam isso enquanto apalpavam as minhas mãos de menina. Não lembro de ter conhecido mãos mais macias que as de minha mãe e de minhas avós, e hoje leio - presencialmente ou em visitas à memória - suas existências complexas, penosas e de bravas lutas nas tantas linhas das palmas das mãos. Um tecido amarrotado de linhas, de rugas formadas pelos apertos de terços e ramos de arruda dos momentos de aflição, ou apenas dos sulcos dos caminhos feitos ou não feitos da vida que encontram abrigo ali.
Há algum tempo me sinto sem densidade, volátil. Vulnerável a qualquer vento mais forte que me dissipe pra qualquer atmosfera. Nesse tempo senti saudades dessas mulheres. Que a força delas estava na leveza de seus passos e mãos, e era ela que mantinha o mundo todo em ordem, as pessoas todas presas ao chão. Essas mulheres eram a terra, o subterrâneo de tudo, tudo aquilo que existe antes de qualquer movimento. Assim são as mulheres.
Me reuni no quintal da casa da família com minha irmã e minha mãe. Nunca antes estive tão vulnerável na presença delas. Qualquer olhar de sombrancelhas mais arqueadas era capaz de me derrubar num surto de lágrimas. Olhos baixos da vergonha de estar vazia da força das minhas ancestrais, da beleza do mundo, da capacidade de vencer qualquer tempestade como a terra que sucumbe, erode, estala e ainda assim germina e serve de chão. Minha irmã me encorajou a tirar cartas de um baralho de tarô. Leu o que elas diziam em voz baixa a pedido de minha mãe.
Leu ali o que me pareceu uma fenda na armadura que eu tinha construído pra mim.
Em seguida, minha mãe recolheu um ramo de arruda e trouxe um prato branco com água e uma colher com um pouco de óleo até a mesa. Me pediu olhos fechados. Rezou as palavras de minha avó paterna num murmúrio indecifrável enquanto fazia sinais da cruz ao meu redor. A cada sequência de orações parava por instantes, molhava um dedo com o óleo e esperava uma gota cair naturalmente no prato com água. Tornava a repetir. Arruda, óleo, água. Arruda, óleo, água.
Estavam ali as minhas origens, o meu chão.
Estava ali a minha densidade, a minha natureza.
Minha mãe se preocupou como mãe que é, e falou baixo sobre o porque havia repetido a benção tantas vezes. Enquanto ela falava baixo eu percebi que não era da benção o que eu precisava, mas desse silêncio outro, tempo outro, desse cheiro outro, desse toque liso que trazia minhas antepassadas para uma breve visita. Ela falava baixo porque temia que os vizinhos escutassem. Falava numa voz ainda mais grave pelo volume baixo e aquilo era como se alguma música antiga tocasse em mim.

Me senti junto às minhas. E isso já era o necessário para seguir.

um temporal

Ontem, e isso já faz um ano, me olhei no espelho e vi ali uma mulher. Não sei o quanto isso pode ser compreendido por quem me lê de fora ou pelo meu próprio eu de qualquer futuro, mas preciso registrar que esta citada distância entre eu e eu é imensa. De menina a mulher, um mar, um acidente geográfico, uma inversão dos pólos magnéticos. Não se deu assim num estalo, nada na natureza - e portanto, na mulher - acontece dessa forma, a não ser que se pisque tão demoradamente até perceber um novo outono como o mesmo (isso só ocorre nos casos extremos da paixão).
Não, não me sinto no mesmo lugar. No mesmo tempo. O espelho me mostra um rosto que aprende a ceder à gravidade das coisas, que aprende não sem medo a aceitar sua queda. Fora do meu reflexo, minha distância de menina a mulher foi percorrida por céu e terra.
Se tudo se passou aqui, neste apartamento, foram então as nuvens lá de fora que se formaram rapidamente num céu quente e vaporoso, e então descoloriram o grande azul e de brancas se tornaram cinzas e então quase negras, e nesse momento começaram suas corridas de mil ventos, um ou outro deles assobiando pavorosamente pela fresta da janela deste aqui. Toda uma iminência de algo, tudo um algo prestes a suceder. Chuva que salpica o amianto até ele também ser inteiro molhado como o céu e os pés e o meu espírito. Chuva sem direção, de todas as direções, granizo  eo barulho do choro empredado, ensurdecedor; céu e terra brancos e duros. (Daqui eu procurava também endurecer para não escoar ou evaporar)
E então o mundo foi se acalmando, compreendendo melhor o seu ciclo e permitindo que as pessoas recomeçassem os seus. Algum silêncio se instaurou, alguma paz. Há telhas caídas, árvores tombadas nas ruas, alguns acidentes de trânsito, roupas encharcadas nos varais - mas o nome disso é paz.
É aí que me reconheço agora. Mantendo a calma apesar das sirenes e alarmes disparados pelas pedras de gelo.

A duração do processo de tornar-me mulher é um temporal.

pequena carta sem remetente a um destinatário anônimo


o nosso é um caso típico da física e da química. um centímetro teu percorre quilômetros em mim, tem o impacto de uma pane elétrica e ao mesmo tempo que me dissolve me faz lembrar que há vida aqui.
pulsante, vibrátil, corrosiva.