17 de março de 2017

um temporal

Ontem, e isso já faz um ano, me olhei no espelho e vi ali uma mulher. Não sei o quanto isso pode ser compreendido por quem me lê de fora ou pelo meu próprio eu de qualquer futuro, mas preciso registrar que esta citada distância entre eu e eu é imensa. De menina a mulher, um mar, um acidente geográfico, uma inversão dos pólos magnéticos. Não se deu assim num estalo, nada na natureza - e portanto, na mulher - acontece dessa forma, a não ser que se pisque tão demoradamente até perceber um novo outono como o mesmo (isso só ocorre nos casos extremos da paixão).
Não, não me sinto no mesmo lugar. No mesmo tempo. O espelho me mostra um rosto que aprende a ceder à gravidade das coisas, que aprende não sem medo a aceitar sua queda. Fora do meu reflexo, minha distância de menina a mulher foi percorrida por céu e terra.
Se tudo se passou aqui, neste apartamento, foram então as nuvens lá de fora que se formaram rapidamente num céu quente e vaporoso, e então descoloriram o grande azul e de brancas se tornaram cinzas e então quase negras, e nesse momento começaram suas corridas de mil ventos, um ou outro deles assobiando pavorosamente pela fresta da janela deste aqui. Toda uma iminência de algo, tudo um algo prestes a suceder. Chuva que salpica o amianto até ele também ser inteiro molhado como o céu e os pés e o meu espírito. Chuva sem direção, de todas as direções, granizo  eo barulho do choro empredado, ensurdecedor; céu e terra brancos e duros. (Daqui eu procurava também endurecer para não escoar ou evaporar)
E então o mundo foi se acalmando, compreendendo melhor o seu ciclo e permitindo que as pessoas recomeçassem os seus. Algum silêncio se instaurou, alguma paz. Há telhas caídas, árvores tombadas nas ruas, alguns acidentes de trânsito, roupas encharcadas nos varais - mas o nome disso é paz.
É aí que me reconheço agora. Mantendo a calma apesar das sirenes e alarmes disparados pelas pedras de gelo.

A duração do processo de tornar-me mulher é um temporal.

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