5 de agosto de 2016

Ficção

não me atravessou a mim
só me atravessou os olhos, os ouvidos, a boca, o pesçoco, a nuca, os ombros e o cheiro
só me atravessou os seios, a rampa das costas, o fim das costelas, a cintura e os quadris
só me atravessou as coxas, o sensível da pele, as dobras da virilha, do tempo e algo mais
só me atravessou o pensamento que vara as fronhas, a mão que vara as roupas, a saliva que vara as bocas e a paz

ensaio de canção para mafalda

#3
é um cupido disléxico
embora de amplo léxico de:
semanas em silêncio
vírgulas, risos tontos,
bons dias em suspenso
espaços e três pontos

#1
é um cupido disléxico
reabilitou seu arco e flecha antiquado
enferrujado
mas errou o lado
pensou "sendo amor, atiro com a pena pra frente pra afagar"
a pena cocegou até furar
e foi entrando na contra-mão
até que o metal oxidado de duas pontas
ao invés de uma
esfriou o peito em dois pontos
ao invés de um
e só entrou um pouquinho,
como tachinha esquecida no chão
ou corte ardido de papel
só que no coração
e alí travou sem saída
tal foi sua interpretação tão bonita
de um jogo mortal de jigsaw

#2
o mesmo cupido disléxico
não admitiu a falha
e mesmo sem muito combustível
acendeu sua flecha em chamas
e quase botou fogo em tudo
mas mirou melhor
só não contou que na ausência de coração
desenvolve-se a manteiga
então sua flecha ardente entrou sem mérito
e a manteiga logo derreteu
e quase por vontade própria
pra dar alguma umidade
pra carne seca de um baião de dois

#4
ó, cupido disléxico
sua flecha-tiro
espatifou os ossos por dentro
mas não atingiu nenhum orgão vital
não tem mal


Luiza

Luiza se sentia assistida como uma atriz no momento em que se suspende num guincho por não se lembrar da próxima ação da cena. Não, não. Este é um momento precioso, véspera de qualquer coisa viva prestes a acontecer no palco. Essa metáfora é impossível porque não é em vida que Luiza pensa.

Luiza se sentia assistida como uma atriz - repito a metáfora por senti-la familiar - que já errou muitos textos numa mesma apresentação. Que gaguejou, que pulou uma palavra importante, que se enroscou em sílabas consonantais, travou - olhou para alguém do público com expressão entendiada - quis disfarçar e foi engolida pelo piso. Luiza tende a exagerar nas metáforas, mas de qualquer forma ela se sentia assistida.

Alguém mais atento poderia dizer que Luiza está sendo assistida apenas por ela mesma e por mais ninguém enquanto escreve num blog ou enquanto permanece em pé frente aquele que arranha seus pensamentos. Esse mesmo alguém mais atento poderia dizer que Luiza se engana tanto a respeito do que pensa de si e das pessoas... e usaria reticências para demonstrar sua decepção. Ao final das reticências, pula uma linha, parágrafo, esse alguém diria que é Luiza quem assiste a todos - e a vida dos outros dói.

Mas voltemos à ficção de Luiza. Assim assistida, qual seria a estética de seu filme? Preto e branco, pós dramático, noir?  Lírico, épico, dramático? Um documentário sobre seu hábito de molhar pão com manteiga no nescau? Qual cena a traduziria em sua complexidade tão preguiçosa? Um rinoceronte num barco remado por ela? Um homem que tenta atravessar uma piscina com uma vela acesa? Uma mulher que olha dentro da boca de um homem para descobrir o que mora ali de verdade? Ou quem sabe um blockbuster qualquer em cores pastéis, corpos de herbalife e bonitos e sempre recíprocos sentimentos?

Luiza em seu íntimo deve achar que sua estética é a das câmeras de segurança. A granulação tem sua poesia, além de sair mais barato, ela deve pensar. Das características que a convencem que a câmera de segurança imortaliza sua vida:
I - Baixo orçamento
II - Baixa definição
III - A paisagem nunca se altera
IV - Há suspense do iminente crime
V - Alguns rostos são confiáveis e suspeitos ao mesmo tempo

Luiza se dispõe a emprestar a fita aos interessados.