30 de outubro de 2017

de quando se acorda

A grande cidade acorda aos sons da pressa e dos acidentes em vias expressas. Das máquinas de corte e solda. É o que ouvem as pálpebras ainda pesadas e difusas que convencem a permanência no solo seguro da cama. Mas se há qualquer esperança, é possível ouvir cantos de pássaro e o fluxo de carros por sobre as emendas do asfalto como uma espécie de sequência de ondas em uma praia. É necessário sonhar em pé.

6 de outubro de 2017

#15 ação para uma mulher voltar

Entender a expectativa como uma sala vazia e limpa, de portas e janelas abertas. Lá fora vê-se um campo aberto, bonito. Tudo o que entra não se espera e é bem vindo, mesmo que pixe as paredes por dentro e suje o chão com pegadas de lama. As janelas abertas permitem que uma revoada de pássaros atravesse a sala no fim da tarde.
Não esperar o bom das coisas, nem o ruim das coisas. Não olhar a paisagem só nas noites escuras e sem lua.
Não esperar.

#14 ação para uma mulher voltar

Uma mulher deve tomar sol enquanto ouve alguma música - dos fones, dos passos, do trânsito, do vento que bagunça os cabelos. Essa mulher deve cantar junto, em homenagem à Ícaro e suas asas de cera.

#13 ação para uma mulher voltar

Uma mulher deve conseguir, em algum momento, distinguir o doce do azedo, do ácido e do amargo. É imprescindível compreender que adoçar as coisas não faz com que elas se transformem em outras coisas. Assim para as limonadas e cafés, assim para as promessas não feitas. Essa mulher deve perceber que o amargor dura mais na boca, dura o tempo que tem que durar.

#12 ação para uma mulher voltar

Uma mulher deve tomar um banho gelado, mesmo que sob o pretexto de uma resistência queimada. Desse modo essa compreende um pouco mais sobre as próprias resistências.

#11 ação para uma mulher voltar

Uma mulher deve tomar um banho bem quente e se sentir abraçada ali, no molhado. Desse modo a mulher escalda os pensamentos gordurosos que insistem em grudar em suas superfícies.

#10 ação para uma mulher voltar

Perceber e receber o cru da vida. A crueza das coisas, a forma bruta das relações.

#9 ação para uma mulher voltar

Não alimentar esperanças.
Não alimentar esperanças.
Não alimentar esperanças.
Não alimentar esperanças.
Não alimentar esperanças.
Não alimentar esperanças.

#8 ação para uma mulher voltar

Manter a todo custo os olhos em pé. Mesmo que tudo mais ceda. os olhos devem se manter acima do nível das lágrimas para que a visão não se turve. Devem voar e vigiar, incessantemente.

#7 ação para uma mulher voltar

Uma mulher deve usar as mãos. Ocupá-las e mantê-las ocupadas. De pele, tinta, sabão, grama ou ar corrente.

#6 ação para uma mulher voltar

Morrer eventualmente não é o aval necessário para agir sem controle das próprias ações, para muito além da familiar saturação, para o trasbordamento. Tudo o que vaza por entupimento não tem pra onde escoar e vira lodo.

#5 ação para uma mulher voltar

Em caso de abstinência do silêncio de um outro, lembrar que não se está vivo porque o outro está vivo. Felizmente estamos vivos porque respiramos e morremos eventualmente.

#4 ação para uma mulher voltar

Permitir que a vida se comunique sem caracteres. Esquecer o celular em casa para não esquecer a casa pelo celular. Evitar os gestos mecânicos que encalacram pensamentos.

#3 ação para uma mulher voltar

Um coração partido é uma argila seca. Um pouco de água e mãos deveriam ser suficientes para fazê-lo voltar.

#2 ação para uma mulher voltar

Na vinda do que vem de fora, daquilo pelo qual tanto se espera mas que chega em rasas ondas, esporádicas e pequenas, às vezes poluídas - aqui me refiro ao amor ou ao que um coração anseia - sentir as ondas nos pés. E deixar-se afundar pelos pés só até que ainda se consigam ver seus dorsos. É necessário sempre manter os pés sem peso demasiado.

#1 ação para uma mulher voltar

Entender-se completa por si, não pelo que vem de fora, quando vem de fora.

bicho

a estranha sensação da vida pertencer mais aos outros do que a mim
e o esforço contínuo de tomar pra mim, tomar pra mim
tomar pra mim o que deveria ser meu
como os passos que eu dou, a princípio
e os olhares que fogem de mim apesar de quererem olhar

e aquele que foge nem percebe que o bicho que se teme está preso em jaula, sem apetite
fraco para rugir
e se solto, provável que não causasse nada ao mundo além de pesadas pegadas
que assim acuado, preso, cutucado às vezes com vara de ponta aguda pra se lembrar de sentir qualquer coisa, assim ele parece uma ameaça
assim como aquele bicho que cutuca - este dono de uma vara, e da paz de grades de ferro que ele mesmo construiu para a proteção do seu mundo
ou para o atrofiamento do mundo do outro