27 de dezembro de 2016

mamihlapinatapai

Mamihlapinatapai (também escrita mamihlapinatapei) é uma palavra da Língua Yagan da Terra do Fogo, listada no Guiness Book como a palavra mais sucinta do mundo. Ela descreve "um olhar trocado entre duas pessoas no qual cada uma espera que a outra tome a iniciativa de algo que os dois desejam, mas nenhuma quer começar ou sugerir".

Será possível conjugá-la no presente?

26 de setembro de 2016

90°

Qual a unidade de um grau, Rafael?

Essa pergunta iniciou um debate entre nós dois que se estendeu por uma tarde inteira. Qual a unidade de um grau? Desses mesmo que se contam naquela régua redonda da escola, ou "transferidor" pelo que informava a lista escolar, e que nas aulas de geometria só servia para aumentar os gastos na kalunga, porque todo e qualquer ângulo era descoberto no lápis e na regra de três, nunca no olho.

Há seis meses meu namorado, com o qual moro há três anos, sofreu um acidente que lhe rendeu três ligamentos rompidos de um joelho, perícias no inss, uma fila de espera serpenteante e infinita do sus, uma equipe de residentes bastante impressionados com a gravidade da situação, todas as parcelas a pagar por um longboard na centauro, muitas bocas retraídas de amigos que dizem "força, cara" e um sentimento persistente de impotência e solidão. Hoje achei que era hora de falar um pouco sobre isso.

Caso alguém não conheça, na saúde pública, há grandes salas de espera bastante cheias e um método de chamada de senhas bastante controverso, que sempre gera resmungos ou berros que atravessam a sala e tiram do transe da senha quase todos aqueles que já tinham se acostumado às 5 horas de espera enquanto assistiam uma Ana Maria Braga muda que ensina a fazer um pão na chapa ou uma simpatia dos seus antepassados com uma molheira de cristal. Particularmente, a decoração me magoa, remete aos anos 80, mistura madeira e laminado, laranja, cinza e verde e hoje mesmo percebi que o chão tem um quê psicodélico. Em alguns momentos dá mesmo uma vontade imensa de gritar "quero café". Tudo isso numa paisagem surrealista composta por dezenas de casos ortopédicos de simples a gravíssimos. Dá tempo para formular todo tipo de pensamento. Um deles é de que o normal é ser infeliz, por isso é tão difícil distinguir a felicidade. Um ou outro paciente brilha entre as olheiras e os suspiros prolongados de todos e fazem lembrar de anjos ou de espíritos muito antigos. Foi assim que eu e Rafael aprendemos a reconhecer motivos para o riso nessas manhãs, e de vez em quando a gente ri mesmo.

Há também os dois recepcionistas cansados, a moça da prancheta de pesquisa que tem uma alma boa, as duas moças que se revezam no canto colorido das crianças que pintam, os seguranças que se empenham na distribuição de etiquetas, o homem que grita nomes sem sobrenome e percebe seu erro, além dos médicos sempre muito bonitos e altos, com certeza competentes, mas que diante da pergunta "o que você faria se fosse alguém querido a você?" vacilam e dizem que contratariam um convênio, provavelmente.

Em uma consulta, Rafael estava em 26º na fila de espera pela cirurgia. Na consulta seguinte, sua posição aumentara para 52º. Não souberam nos informar os critérios, afinal, a Tânia não está. A Simone talvez saiba. Não sabe. Já perguntou pro médico? Sim. Aparentemente muito pode acontecer nos três meses entre uma consulta e outra. Uma cirurgia feita a cada 3 semanas era a nossa perspectiva, podem fazer as contas. Outra perspectiva era ou ainda seja pagar 50 mil reais. Mas me acompanhem aqui: Três anos de pausa para um homem de 28 anos. "Pausa" porque não é uma situação permanente nem temporária, é ambas. Três anos de afastamento não do trabalho, mas da possibidade de fazer planos. Mas não é sobre isso que quero falar.

Fui eu quem dei o skate para ele, um dia antes. Eu dou presentes quando quero melhorar algo ou quando tenho algum dinheiro sobrando. Você que conheceu essa história já me disse "Não se culpa, Marô! Poderia acontecer de qualquer jeito." (ou fez alguma piada por pensar que a culpa é fato vencido ou ficcional - a graça é talvez a única forma de existência para essas pessoas, tudo bem) Agradeço de verdade. Acontece que a culpa geralmente não obedece a razão, amigos. Ela vai habitando aos poucos cada almoço que você demorou pra preparar, cada ligação que você não fez para determinado bom advogado por medo dos honorários, cada resposta ríspida que sai sem querer, cada pensamento que vagueia fora do que há aqui, cada NET cortada por falta de saldo, cada caminhada sozinha até o mercado, cada silêncio de alguém que não quer te pedir nada porque acha que você já está fazendo demais. Mas não é sobre mim que eu quero falar.

Disseram que a cirurgia só poderia ser feita se o Rafael conseguisse dobrar o joelho a 90°. Disseram que talvez fosse possível convencer o médico a antecipar a cirurgia se o Rafael conseguisse dobrar o joelho a 90°. Ele só conseguia dobrar 20° com muita dor. A fisioterapeuta me disse pra puxar a orelha do Rafael para que ele insistisse nos exercícios. Vieram dezoito cartelas de dipirona e mais um remédio mais forte para a dor. E a cada exercício eu tentava adivinhar o ângulo no olho (sem regra de três).

Como professora e artista do corpo, tem me emocionado a sensação de "mover as pessoas". Hoje senti o mesmo observando as mãos cuidadosas das fisioterapeutas nessa missão tão concreta de retornar movimento a alguém, indicando a subida de pequenas rampas, a descida de um degrau, a dobra de um dedo, a primeira caminhada com uma prótese infantil. Não é fácil. E pela milésima vez imaginei o que é estar privado de movimento.

(Perdi a conta de quantas vezes me referi ao rafa como "imobilizado". Penso que o imobilize um pouco mais sempre que digo isso)

Na tarde em que conversamos sobre graus, o Rafael disse "É engraçado perceber que a meta é essa. Não fazer a cirurgia, mas dobrar o joelho. Dobrar o joelho sem saber pra quê é a minha esperança. Ok."

Na tarde em que conversamos sobre graus, um amigo fez uma piada sobre a perna do Rafa chegar a 90°Celsius. 90° de quê? Descobrimos no wikipedia que a unidade dos graus dos ângulos tem a ver com minutos e segundos. Tem a ver com tempo. A unidade do grau é o tempo, Rafael.

Hoje, quando o Rafael chegou aos 90°, eu senti de novo o vento de quem anda pela primeira vez de bicicleta sem a ajuda de ninguém. É importante compartilhar isso.
Hoje eu chorei como uma criança vendo um pedal de bicicleta dar uma volta completa.

5 de agosto de 2016

Ficção

não me atravessou a mim
só me atravessou os olhos, os ouvidos, a boca, o pesçoco, a nuca, os ombros e o cheiro
só me atravessou os seios, a rampa das costas, o fim das costelas, a cintura e os quadris
só me atravessou as coxas, o sensível da pele, as dobras da virilha, do tempo e algo mais
só me atravessou o pensamento que vara as fronhas, a mão que vara as roupas, a saliva que vara as bocas e a paz

ensaio de canção para mafalda

#3
é um cupido disléxico
embora de amplo léxico de:
semanas em silêncio
vírgulas, risos tontos,
bons dias em suspenso
espaços e três pontos

#1
é um cupido disléxico
reabilitou seu arco e flecha antiquado
enferrujado
mas errou o lado
pensou "sendo amor, atiro com a pena pra frente pra afagar"
a pena cocegou até furar
e foi entrando na contra-mão
até que o metal oxidado de duas pontas
ao invés de uma
esfriou o peito em dois pontos
ao invés de um
e só entrou um pouquinho,
como tachinha esquecida no chão
ou corte ardido de papel
só que no coração
e alí travou sem saída
tal foi sua interpretação tão bonita
de um jogo mortal de jigsaw

#2
o mesmo cupido disléxico
não admitiu a falha
e mesmo sem muito combustível
acendeu sua flecha em chamas
e quase botou fogo em tudo
mas mirou melhor
só não contou que na ausência de coração
desenvolve-se a manteiga
então sua flecha ardente entrou sem mérito
e a manteiga logo derreteu
e quase por vontade própria
pra dar alguma umidade
pra carne seca de um baião de dois

#4
ó, cupido disléxico
sua flecha-tiro
espatifou os ossos por dentro
mas não atingiu nenhum orgão vital
não tem mal


Luiza

Luiza se sentia assistida como uma atriz no momento em que se suspende num guincho por não se lembrar da próxima ação da cena. Não, não. Este é um momento precioso, véspera de qualquer coisa viva prestes a acontecer no palco. Essa metáfora é impossível porque não é em vida que Luiza pensa.

Luiza se sentia assistida como uma atriz - repito a metáfora por senti-la familiar - que já errou muitos textos numa mesma apresentação. Que gaguejou, que pulou uma palavra importante, que se enroscou em sílabas consonantais, travou - olhou para alguém do público com expressão entendiada - quis disfarçar e foi engolida pelo piso. Luiza tende a exagerar nas metáforas, mas de qualquer forma ela se sentia assistida.

Alguém mais atento poderia dizer que Luiza está sendo assistida apenas por ela mesma e por mais ninguém enquanto escreve num blog ou enquanto permanece em pé frente aquele que arranha seus pensamentos. Esse mesmo alguém mais atento poderia dizer que Luiza se engana tanto a respeito do que pensa de si e das pessoas... e usaria reticências para demonstrar sua decepção. Ao final das reticências, pula uma linha, parágrafo, esse alguém diria que é Luiza quem assiste a todos - e a vida dos outros dói.

Mas voltemos à ficção de Luiza. Assim assistida, qual seria a estética de seu filme? Preto e branco, pós dramático, noir?  Lírico, épico, dramático? Um documentário sobre seu hábito de molhar pão com manteiga no nescau? Qual cena a traduziria em sua complexidade tão preguiçosa? Um rinoceronte num barco remado por ela? Um homem que tenta atravessar uma piscina com uma vela acesa? Uma mulher que olha dentro da boca de um homem para descobrir o que mora ali de verdade? Ou quem sabe um blockbuster qualquer em cores pastéis, corpos de herbalife e bonitos e sempre recíprocos sentimentos?

Luiza em seu íntimo deve achar que sua estética é a das câmeras de segurança. A granulação tem sua poesia, além de sair mais barato, ela deve pensar. Das características que a convencem que a câmera de segurança imortaliza sua vida:
I - Baixo orçamento
II - Baixa definição
III - A paisagem nunca se altera
IV - Há suspense do iminente crime
V - Alguns rostos são confiáveis e suspeitos ao mesmo tempo

Luiza se dispõe a emprestar a fita aos interessados.

27 de julho de 2016

dorme

eu queria ter estado mais perto
enquanto te beijo em cada parte do rosto
é inevitável querer estar mais perto mesmo assim
enquanto te abrigo no meu colo, enquanto te molho a nuca para te impedir de cair no sono
eu ainda não entendo tão bem a ânsia de não viver
queria ter estado mais perto pra ver se entendia assim, por toque
ainda não entendi
porque amar é só o que se sabe
e quando se ama se quer vivo
mesmo tracejando assim, com qualquer bic, uma nova linha da vida na sua mão direita

te desejo o oposto do teu desejo
e imagino não deve ser agradável ser privado assim do sono
e embora ainda não saiba do que te preservo enquanto leio bulas no google
peço paciência, amigo
cheguei a tempo, estou perto 
de corpo e memória

é só o necessário

4 de julho de 2016

uma vaga cativa

Há aqui um senhor que sempre guarda sua vaga em frente ao prédio.
Apesar de não ter carro, em mim se criava uma aversão a esse hábito: o senhor se levantava cedo, fazia o que se havia de fazer com um carro em São Paulo e voltava a tempo de nenhum outro ocupar sua vaga. Ao meu olhar justo e puro, um egoísta! Esse incômodo tão nobre  acabou por fazer parte da minha rotina, e de vez em quando me percebia tendo prazer ao criar pequenos jogos para mim mesma - daquele tipo de jogo em que você deve chegar ao microondas antes que ele anuncie o terceiro sinal, sim - sobre a presença ou ausência daquele Uno cinza enferrujado em sua vaga cativa, enquanto maldizia (um pouquinho só) o senhor e sua rotina.

Semana passada estive no ponto de ônibus com ele, às 6 da manhã de um sábado.
Perguntei o que faria, ele disse que nada. Só gostava de andar pela manhã. 
Eu disse que era corajoso acordar tão cedo por vontade própria. E lembro de ter pensado naquele momento, durante um bocejo para ser mais precisa, que se eu não tivesse tantas obrigações talvez eu acordasse cedo também, que era a obrigação de acordar cedo a coisa ruim, os velhos que tem sorte.
Ele completou dizendo que passou a acordar cedo depois de enfartar pela primeira vez, e que até andaria até a Paulista, mas seu coração não aguentaria terrenos íngremes, disse o médico. 
Pegamos o mesmo ônibus até a Paulista. Minha desculpa para não andar era minha grande sacola e o medo de atrasar.
Nos despedimos sem muito em comum e seguimos para nossas rotinas.

Sábado passado o encontrei no elevador.
Desceu comigo mas se despediu no portão, em frente ao Uno cinza.
Andei alguns metros, olhei para trás.
Ele parecia esperar que nossa distância aumentasse para depois seguir o mesmo caminho. Presumi seu desconforto. Velhos costumam se sentir fardos para jovens, ou ver nos jovens um fardo, ainda não descobri.
Perguntei se iria para o ponto. Se queria companhia. Ele aceitou.
Andamos juntos. Ele disse que não andaria tão rápido quanto uma jovem, então eu desacelerei (até perceber que ele tentava andar mais rápido para acompanhar o que presumia ser a minha velocidade real).
Dei graças a deus pelo semestre estar acabando.
Ele concordou, disse que assim se afastava mais rápido do evento e se aproximava mais rápido do que quer que houvesse no futuro. Tive que perguntar.

Sua filha morrera em maio. E em maio eu ainda o maldizia pelo seu Uno.
Um aneurisma dentro de um ônibus bastou.
Ele só pensava nela naquela manhã. Tudo lembrava ela.

Sua voz se agravou, estávamos numa subida.
Eu ando bem até, mas esses terrenos íngremes...
A safena não aguenta
O médico disse...
Mas às vezes eu penso, de que adianta tudo isso? 
Pra que se cuidar tanto? 

Um grande vazio operava entre nós, enquanto o sol ainda surgia.
Minhas palavras ainda não dão conta dessa distância. Digo 'força' sem saber qual a força necessária para aquele senhor. Sou jovem e de fato ando depressa demais.  
Tínhamos ali menos em comum do que na primeira conversa, mas havia qualquer coisa de voz e ouvidos agora. Ele disse que pegaria o próximo ônibus, e me despedi com um toque em seu ombro e um olhar que não dizia nada, provavelmente.

Hoje passei pelo Uno e me vi do avesso por um momento.



17 de junho de 2016

pensamento sobre as formigas

quanto há num copo d'água com açúcar?

uma solução doce para as dores que salgam
tal é o soro inventado pelas mães
um copo que serve de lente para observar alguém que chora
este ser que chora e não sou eu
curioso
um toque sempre te reduz à minha superfície
o copo dispensa o toque e aumenta a pessoa
(não há copo d'água com açúcar que se faça em primeira pessoa, sem interlocutor)


o que gira num copo d'água com açúcar?

a colher que vira sino
a órbita das estrelas que se afogam
as estrelas de açúcar que decantam no chão
(me veio agora essa lembrança, de vê-las no céu
com as costas molhadas de grama da noite
desconfortável e poética, a beleza deve ser isso)


o que sobra num copo d'água com açúcar?

as formigas, e só.

28 de janeiro de 2016

um rascunho antigo


canso de ser travesseiro de olheiras, papel higiênico de lágrimas
de ser corpo pra braços satisfeitos
de envolver com braços insatisfeitos corpos inertes
canso de contar dinheiro e tempo
de não conversar com ninguém em dois terços do meu dia
canso de pedir desculpas por pedir desculpas demais


finjamos por um momento que eu não goste de te ouvir, que os meus conselhos são desprezíveis, que a minha compreensão de olhos concentrados é para disfarçar o meu sono e a minha falta de sociabilidade.


sigamos assim, ao que segue:
bom dia, vou dormir.