4 de julho de 2016

uma vaga cativa

Há aqui um senhor que sempre guarda sua vaga em frente ao prédio.
Apesar de não ter carro, em mim se criava uma aversão a esse hábito: o senhor se levantava cedo, fazia o que se havia de fazer com um carro em São Paulo e voltava a tempo de nenhum outro ocupar sua vaga. Ao meu olhar justo e puro, um egoísta! Esse incômodo tão nobre  acabou por fazer parte da minha rotina, e de vez em quando me percebia tendo prazer ao criar pequenos jogos para mim mesma - daquele tipo de jogo em que você deve chegar ao microondas antes que ele anuncie o terceiro sinal, sim - sobre a presença ou ausência daquele Uno cinza enferrujado em sua vaga cativa, enquanto maldizia (um pouquinho só) o senhor e sua rotina.

Semana passada estive no ponto de ônibus com ele, às 6 da manhã de um sábado.
Perguntei o que faria, ele disse que nada. Só gostava de andar pela manhã. 
Eu disse que era corajoso acordar tão cedo por vontade própria. E lembro de ter pensado naquele momento, durante um bocejo para ser mais precisa, que se eu não tivesse tantas obrigações talvez eu acordasse cedo também, que era a obrigação de acordar cedo a coisa ruim, os velhos que tem sorte.
Ele completou dizendo que passou a acordar cedo depois de enfartar pela primeira vez, e que até andaria até a Paulista, mas seu coração não aguentaria terrenos íngremes, disse o médico. 
Pegamos o mesmo ônibus até a Paulista. Minha desculpa para não andar era minha grande sacola e o medo de atrasar.
Nos despedimos sem muito em comum e seguimos para nossas rotinas.

Sábado passado o encontrei no elevador.
Desceu comigo mas se despediu no portão, em frente ao Uno cinza.
Andei alguns metros, olhei para trás.
Ele parecia esperar que nossa distância aumentasse para depois seguir o mesmo caminho. Presumi seu desconforto. Velhos costumam se sentir fardos para jovens, ou ver nos jovens um fardo, ainda não descobri.
Perguntei se iria para o ponto. Se queria companhia. Ele aceitou.
Andamos juntos. Ele disse que não andaria tão rápido quanto uma jovem, então eu desacelerei (até perceber que ele tentava andar mais rápido para acompanhar o que presumia ser a minha velocidade real).
Dei graças a deus pelo semestre estar acabando.
Ele concordou, disse que assim se afastava mais rápido do evento e se aproximava mais rápido do que quer que houvesse no futuro. Tive que perguntar.

Sua filha morrera em maio. E em maio eu ainda o maldizia pelo seu Uno.
Um aneurisma dentro de um ônibus bastou.
Ele só pensava nela naquela manhã. Tudo lembrava ela.

Sua voz se agravou, estávamos numa subida.
Eu ando bem até, mas esses terrenos íngremes...
A safena não aguenta
O médico disse...
Mas às vezes eu penso, de que adianta tudo isso? 
Pra que se cuidar tanto? 

Um grande vazio operava entre nós, enquanto o sol ainda surgia.
Minhas palavras ainda não dão conta dessa distância. Digo 'força' sem saber qual a força necessária para aquele senhor. Sou jovem e de fato ando depressa demais.  
Tínhamos ali menos em comum do que na primeira conversa, mas havia qualquer coisa de voz e ouvidos agora. Ele disse que pegaria o próximo ônibus, e me despedi com um toque em seu ombro e um olhar que não dizia nada, provavelmente.

Hoje passei pelo Uno e me vi do avesso por um momento.



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