26 de setembro de 2016

90°

Qual a unidade de um grau, Rafael?

Essa pergunta iniciou um debate entre nós dois que se estendeu por uma tarde inteira. Qual a unidade de um grau? Desses mesmo que se contam naquela régua redonda da escola, ou "transferidor" pelo que informava a lista escolar, e que nas aulas de geometria só servia para aumentar os gastos na kalunga, porque todo e qualquer ângulo era descoberto no lápis e na regra de três, nunca no olho.

Há seis meses meu namorado, com o qual moro há três anos, sofreu um acidente que lhe rendeu três ligamentos rompidos de um joelho, perícias no inss, uma fila de espera serpenteante e infinita do sus, uma equipe de residentes bastante impressionados com a gravidade da situação, todas as parcelas a pagar por um longboard na centauro, muitas bocas retraídas de amigos que dizem "força, cara" e um sentimento persistente de impotência e solidão. Hoje achei que era hora de falar um pouco sobre isso.

Caso alguém não conheça, na saúde pública, há grandes salas de espera bastante cheias e um método de chamada de senhas bastante controverso, que sempre gera resmungos ou berros que atravessam a sala e tiram do transe da senha quase todos aqueles que já tinham se acostumado às 5 horas de espera enquanto assistiam uma Ana Maria Braga muda que ensina a fazer um pão na chapa ou uma simpatia dos seus antepassados com uma molheira de cristal. Particularmente, a decoração me magoa, remete aos anos 80, mistura madeira e laminado, laranja, cinza e verde e hoje mesmo percebi que o chão tem um quê psicodélico. Em alguns momentos dá mesmo uma vontade imensa de gritar "quero café". Tudo isso numa paisagem surrealista composta por dezenas de casos ortopédicos de simples a gravíssimos. Dá tempo para formular todo tipo de pensamento. Um deles é de que o normal é ser infeliz, por isso é tão difícil distinguir a felicidade. Um ou outro paciente brilha entre as olheiras e os suspiros prolongados de todos e fazem lembrar de anjos ou de espíritos muito antigos. Foi assim que eu e Rafael aprendemos a reconhecer motivos para o riso nessas manhãs, e de vez em quando a gente ri mesmo.

Há também os dois recepcionistas cansados, a moça da prancheta de pesquisa que tem uma alma boa, as duas moças que se revezam no canto colorido das crianças que pintam, os seguranças que se empenham na distribuição de etiquetas, o homem que grita nomes sem sobrenome e percebe seu erro, além dos médicos sempre muito bonitos e altos, com certeza competentes, mas que diante da pergunta "o que você faria se fosse alguém querido a você?" vacilam e dizem que contratariam um convênio, provavelmente.

Em uma consulta, Rafael estava em 26º na fila de espera pela cirurgia. Na consulta seguinte, sua posição aumentara para 52º. Não souberam nos informar os critérios, afinal, a Tânia não está. A Simone talvez saiba. Não sabe. Já perguntou pro médico? Sim. Aparentemente muito pode acontecer nos três meses entre uma consulta e outra. Uma cirurgia feita a cada 3 semanas era a nossa perspectiva, podem fazer as contas. Outra perspectiva era ou ainda seja pagar 50 mil reais. Mas me acompanhem aqui: Três anos de pausa para um homem de 28 anos. "Pausa" porque não é uma situação permanente nem temporária, é ambas. Três anos de afastamento não do trabalho, mas da possibidade de fazer planos. Mas não é sobre isso que quero falar.

Fui eu quem dei o skate para ele, um dia antes. Eu dou presentes quando quero melhorar algo ou quando tenho algum dinheiro sobrando. Você que conheceu essa história já me disse "Não se culpa, Marô! Poderia acontecer de qualquer jeito." (ou fez alguma piada por pensar que a culpa é fato vencido ou ficcional - a graça é talvez a única forma de existência para essas pessoas, tudo bem) Agradeço de verdade. Acontece que a culpa geralmente não obedece a razão, amigos. Ela vai habitando aos poucos cada almoço que você demorou pra preparar, cada ligação que você não fez para determinado bom advogado por medo dos honorários, cada resposta ríspida que sai sem querer, cada pensamento que vagueia fora do que há aqui, cada NET cortada por falta de saldo, cada caminhada sozinha até o mercado, cada silêncio de alguém que não quer te pedir nada porque acha que você já está fazendo demais. Mas não é sobre mim que eu quero falar.

Disseram que a cirurgia só poderia ser feita se o Rafael conseguisse dobrar o joelho a 90°. Disseram que talvez fosse possível convencer o médico a antecipar a cirurgia se o Rafael conseguisse dobrar o joelho a 90°. Ele só conseguia dobrar 20° com muita dor. A fisioterapeuta me disse pra puxar a orelha do Rafael para que ele insistisse nos exercícios. Vieram dezoito cartelas de dipirona e mais um remédio mais forte para a dor. E a cada exercício eu tentava adivinhar o ângulo no olho (sem regra de três).

Como professora e artista do corpo, tem me emocionado a sensação de "mover as pessoas". Hoje senti o mesmo observando as mãos cuidadosas das fisioterapeutas nessa missão tão concreta de retornar movimento a alguém, indicando a subida de pequenas rampas, a descida de um degrau, a dobra de um dedo, a primeira caminhada com uma prótese infantil. Não é fácil. E pela milésima vez imaginei o que é estar privado de movimento.

(Perdi a conta de quantas vezes me referi ao rafa como "imobilizado". Penso que o imobilize um pouco mais sempre que digo isso)

Na tarde em que conversamos sobre graus, o Rafael disse "É engraçado perceber que a meta é essa. Não fazer a cirurgia, mas dobrar o joelho. Dobrar o joelho sem saber pra quê é a minha esperança. Ok."

Na tarde em que conversamos sobre graus, um amigo fez uma piada sobre a perna do Rafa chegar a 90°Celsius. 90° de quê? Descobrimos no wikipedia que a unidade dos graus dos ângulos tem a ver com minutos e segundos. Tem a ver com tempo. A unidade do grau é o tempo, Rafael.

Hoje, quando o Rafael chegou aos 90°, eu senti de novo o vento de quem anda pela primeira vez de bicicleta sem a ajuda de ninguém. É importante compartilhar isso.
Hoje eu chorei como uma criança vendo um pedal de bicicleta dar uma volta completa.

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