12 de maio de 2012

Telhados

(http://www.youtube.com/watch?v=IUAF3abGY2M&feature=related)

Era um sábado diferente. A luz mudara.
Fazia meses que só conhecia a luz alta do sábado, a que há entre um anoitecer e um acordar tardio. Vira-se obrigada a fazer um exame nessa manhã, e era apenas por essa razão - não pelos raios tímidos de sol, nem pela calmaria que só se encontra aí, quando os trabalhadores dormem e sonham com a programação de fim de semana da tv - que estava ali, tão cedo tão distante tão calada. Avental, toucas para pés, seu interior sendo explorado por câmera, gase, tinta azul e pequenos instrumentos que, por falta de estudo em medicina, se permitia chamar de colheres. "Acompanhe pelo monitor, senhora." Colheres dentro dela, e ela pensando que devia ter comido um pão com manteiga.

Do lado de fora, pensou na casa muito longe e nos ônibus que de sábado fazem regime de gente e aproveitam mais a cama, eles merecem, vai que pegam uma pneumonia ou qualquer dessas doenças pulmonares de outono, eu bem que já vi um tossindo preto, bem que eu vi. Sem pudores, um gordo vento inflou-lhe o vestido, engravidando-a de brisa. Seria menino, não fossem os nove meses que demoraram tão pouco pra acabar. Olhou o céu, branco. Daquela brancura que os grandes conhecedores do Belo dos programas da tarde denominam "tempo feio". Era belo assim - tanta gente que sempre quis ver neve, nem percebem que é ela que cobre o chão do céu de vez em quando -, branco. Quis andar.

Na vizinhança muitos pacientes, a maioria impaciente, sempre à espera de resultados e curas e notícias ruins e diagnósticos de morte iminente para que possam comer chocolate e ficar nus em seus últimos dias com esse álibi que ninguém contestaria. O tipo de paciente que parece nunca ter deixado de ser paciente. E haviam os pacientes dos pacientes, aqueles que esperavam pelo outro e seus resultados, curas, notícias ruins e diagnóstico de morte iminente, já pensando em recusar ser fiador de gente assim, que morrendo logo vai querer empréstimo pra última viagem e crediário das Casas Bahia pra carimbar um sofá novo uma vez só. Deveriam saber que estar morrendo e estar morto é a mesma coisa. Deveriam mesmo.

Quase fugindo do cheiro de silêncio desinfetado, continuou andando a passos incertos, sabendo onde ia parar, ela sabia, decerto, sem dúvida, "quero flores", ela pensava em comprar flores, só umas florezinhas e ir embora, o dia estava frio e ela precisava comprar um remédio, "só umas flores", ela pensava. Acontece que para além das flores havia a morada dos avós, a cama rígida dos antepassados, o albergue das camas de mármore dos que já foram. Quis entrar. A cada passo era como se adentrasse num ar mais espesso, como se o tempo dos mortos fosse macio, oleoso. Uma aglomeração no portão, esperavam um corpo. Rostos sem maquiagem, roupas coloridas, não é luto de filme americano. O povo daqui se move rápido quando alguém para de se mover de repente. É rápido que se vestem, é rápido que entendem o que aconteceu, é rápido que oferecem condolências, é rápido que choram pra que os que choram mais doídos não se entristeçam mais. E rapidinho já estão tomando café que alguma vizinha do morto deixou na mesinha. 

Passando do portão e dos olhares apressados que parecem reconhecer o lugar - já que não são de lá,  não pertencem àquele lugar, nada ali é natural, nada, nada, por favor deus livrai-nos do mal, amém - é o devagar que toma conta. Os vivos de dentro estão de visita, possuem a calma de quem já não tem pretensão de olhar nos olhos vivos, de arrancar palavras ou de cheirar os cabelos a qualquer custo de quem já foi. Os olhos destes são olhos de saudades dos mortos bons (aqueles que permanecem mortos), aqueles outros, desesperados, permanecem úmidos constantemente pelos mortos ruins (assim chamados porque ficam presos às lágrimas dos vivos, sofrem com eles, não os abandonam). São duas saudades distintas, aquela que manda um abraço e se contenta com um cartão postal, e aquela que exige o abraço e a quem um cartão postal nunca seria recebido sem gritos e rasgos. A ela nada agradaria mais do que um anexo preso àquele  com um clips, uma passagem de ida, é só o que pede.

Tentou distinguir em meio às superfícies escorregadias dos azulejos algum conhecido. Há famílias inteiras morando lá, pede-se silêncio e cuidado com as quinas. Passou por velhos que lavavam os túmulos com o zelo de quem troca fraldas. Um senhor detalhava com um pincel a moldura do altar de uma das lápides, queria agradar a Deus. Um artista de cemitério, um pintor vivo da morte. Sua esposa encarou a visitante, como uma alma ou uma joaninha que espera o próximo passo do outro para então tomar uma direção. Envergonhada, seguiu sua procura. Nem mesmo sabia mais o que procurava. Alguns corredores estreitos depois, quando já não sabia se pisava em chãos ou em telhados, encontrou um sobrenome conhecido. Jazia ali a família de sua avó. O vento que se formou nesse reencontro a despenteou, e com seus cabelos também seus pensamentos embaraçaram. O que a trouxera ali, afinal? O vento insistia em desarrumá-la, ele bem sabia que ela deixara de usar roupas largas por vergonha de seu corpo, sabia que ela as usava agora para que ele tivesse espaço para abraçá-la. Abraçada assim, como estava, beijou o passado, chorou diante dele. Diante da lembrança dos olhos claros e pretos que sempre a estremeceram quando diante de uma fotografia antiga. Pediu ajuda. Insistiu que a acompanhassem para que consertassem a vida dos seus. Enfim distraiu-se com um barulho, secou as lágrimas. Sabia que não era de bom tom ficar assim tão próxima de gente morta. Dali só conhecia sua avó, e ela provavelmente não conhecia sua neta dos seus últimos anos de escleorose, ainda que lhe oferecesse a lembrança dos doces italianos açucarados. Ficaram assim, se fitando por um tempo. E desta vez o vento, este do sopro de sua avó, pediu-lhe que dissesse o que tinha vindo dizer. Num suspiro, a menina disse: "afinal qual o melhor cheiro, o da terra por cima ou por baixo?

Encontrara a morte, era ela o que procurava - e das flores esta só tinha o aroma.

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