31 de maio de 2012

Oração à cerâmica azul

Meu tio enfartou hoje.
Andava em alguma daquelas ruas sem ninguém só com árvores e passeios de domingo de sua juventude. Almoçou, dormiu e deve ter ido andar, ele sempre faz isso. Enrijeceu, caiu. Deve ter gritado aquele grito dos que pedem socorro sem querer. Grito de quem não grita há tanto tempo que esqueceu como gritar, grito mandado por Deus que ordena "grite! antes que você não possa mais!". Na infância, lembro de ter ganhado dele três golfinhos de cerâmica azul. Na morte do meu avô, eu, criança, quis ter qualquer coisa em mãos pra chorar por alguma coisa concreta, não pela ideia abstrata e estúpida da morte. Peguei os golfinhos do meu tio, impus a eles a memória de tê-los ganhado do meu avô, afinal, moravam na mesma casa, tinham o mesmo cheiro, tinham o mesmo prazer em me mostrar o pé de morango que brotava de uma privada cheia de terra que instalaram no quintal. Não recorri aos golfinhos na morte da minha avó. A concretude da cerâmica deu lugar à concretude da memória, minha idade já permitia tocar nas bochechas vermelhas e ouvir o arrastar dos chinelos de pano no assoalho sem precisar de bochechas ou de chinelos nas mãos. Já tinha entendido a morte. A morte era ficar sem alguém, mesmo que você já estivesse sem alguém há um tempo. A morte era a impossibilidade de reencontrar alguém, a incapacidade de, em uma visita de Natal, compensar (e adquirir o perdão divino) anos sem visitas. A morte é tudo aquilo que faz pensar no que a gente não fez por alguém. E eu não via meu tio desde que as visitas de domingo aos meus avós cessaram. Mentira, o vi sim. Poucas vezes, às vezes sozinha, quando passava pela rua antiga e o via na calçada. Ele me fazia entrar, colher trevos de quatro folhas e levar umas jabuticabas ou limões. Os trevos talvez ainda estejam lá, uma plantação deles compensando a falta de sorte. A jabuticabeira morreu, deve ter sido regada demais. Restou o limoeiro que, árido como era, aguentava um regador de lágrimas salgadas sem reclamar. Minha mãe me fez chá deles esses dias pra melhorar minha bronquite, mas ela piora quando eu choro, mesmo com chá. E agora essa vontade de comer jabuticaba. Que nem a que dava  nos domingos à noite, quando o quintal estava escuro demais pra achá-las. Nele brilhavam apenas as centenas de  vaga-lumes que eu só encontrei naquela casa. Estrelas das árvores. Hoje eles não existem mais, em nenhum lugar. Também eles partiram pra algum lugar com jabuticabas. A casa agora está vazia, ressoando apenas o relógio de pêndulo que badalava de hora em hora, em meio a muitos outros relógios parados. Um tempo que corre em meio a outros tempos pausados. Meu tio é relojoeiro. 

É, não morreu ainda.
Avisa teu pai.
Os médicos disseram pra não ter esperanças.
Chegou quase morto.
Ficou tempo demais sem resgate. O cérebro foi afetado.
Foi na rua, sozinho.
Almocei com ele e ele foi dormir, deve ter saído depois.
Ele costuma passear nesse horário.
Sempre andava com uma caderneta com o telefone dos irmãos no bolso.
Não pode receber visitas.
Avisa teu pai.

Aviso.

Ficou tempo demais sem visitas, o cérebro foi afetado. Deve ter saído sem esperanças, depois do almoço. Andava na rua com o telefone dos irmãos. Não tinha esperanças no bolso. Avisa teu pai sozinho. Foi na rua, sozinho. Não morreu, ele costuma dormir nesse horário. 

3 comentários:

Arthur disse...

Gostei do texto.

Isabela disse...

As vezes seus textos são tão pessoais que me confundem. Começo a ler sentindo que estou lendo coisa proibida, de tão secreto e sincero que é, e de repente começo a achar muito incrível para ser verdade, começo a achar que é ficção.

Acho que isso é bom rs :D

Marô Zamaro disse...

Devo dizer que eu acho isso bem bom!
Intimidade fantástica, acho que daí que surgiu o armário de Nárnia. hahaha
Obrigada, Isa :)