22 de julho de 2010

O atrito do pé e a rotação da terra

Saiu.
Após a queda, tomado por um espírito irremediável de aventura, saiu andando.
Cada olho seu via coisa diferente. Vantagem de sua condição sem vértices.
Macio ou turbulento, percorria os inóspitos domínios de sua existência, sem nunca ser detido por forças alheias.
Percorreu relvas marrons, montanhas serrosas.
Na planície, desejou a saída. Escura, fria, sombreada por nuvens cortinadas, a paisagem impelia quem fosse à aventura. Seu desânimo consequente foi questionado ao vislumbrar novamente Tyndall nos raios que se metiam no lugar. Sentia que poderia pegá-los e torná-los sabres de luz, como outrora vira, certa vez, em sua longa e já esquecida vida. Não pôde fazê-lo, no entanto.
A desilusão apontou-lhe a saída, e seguiu o aventureiro sem destino.
Sua ausência de destino sempre foi o que trilhou previsivelmente sua vida. Alardeando autonomia, via-se sempre no compasso de passos que não eram os seus.

E compassado ia. Com o passado ia.
Desbravou a si mesmo na jornada. A vida rolava ao seu lado.
Lembrou de que não há existência sem comparação. Não há morte sem vida, silêncio sem som, nem movimento sem imobilidade. Não sabia o que se movia, já que tudo precisa de um referencial, se ele ou o resto. Suas referências formavam borrões ao seu lado, de tão rápido se moviam em sentido contrário ao seu.
Convenceu-se de que estava parado. E foi a primeira vez que o mundo parou.
Não aguentou. Se além dele nada se mexia por não ter a quem se comparar, tinha que prosseguir.
O vento soprava rajadas ofensivas de poeira cósmica.
Desviava das folhas silenciosas que deitavam para a sesta.
Rumores de vozes e passos retumbavam em suas solas gastas.
A claridade fazia-se vermelha e depois negra.

Viu diante de si um abismo. Sua labirintite provocou nele a ânsia suicída de pular. Mergulhou em moléculas pesadas. Cardumes de pensamentos perpassavam ele, seduzindo-o com coloridas escamas gelatinosas e fugidias, mas sumiam logo, abandonando-o à imensidão de si. Sua trajetória existia à mercê da corrente imprevisível que o guiava pela mão posta sob a sua, fluida, obstinada. A partitura que se desenhava em nada se assemelhava ao que conhecia por dança. Seu tempo era elástico, malha lycra. Seu compasso não havia. Tinha ritmo, porém. O ritmo do ciclo, o ritmo do infinito, o ritmo do fim. Acariciava corais de crochê e fazia piruetas, locomovendo assim corpos que não viam necessidade de se locomover. Criaturas de muitos, poucos ou sem olhos prosseguiam sua rotina como se o intruso não existisse. Tudo se coloria pela luz guache que vinha de cima, dos lados, do fundo. O sonho nunca foi desejado mais real como neste momento em que o que via. Todas as coisas aumentavam e diminuam de escala a seu bel-prazer, engordando em velocidades inimagináveis e emagrecendo sem regime. Seres sem humanidade, sem realidade, brotavam das entranhas de algo que se assemelhava ao nada, mas o nada não existia porque aquilo ainda não era o tudo e não há nada sem tudo, nem tudo sem nada, e quando aquilo fosse o tudo, aquilo seria sua realidade, e a sua realidade iria então querer uma saída, e a saída seria o nada, que passaria a existir então, mas nunca seria encontrado, porque o tudo seria uma fronteira. A mão sob a sua fez-se impalpável, água. A corrente que o conduzia, que sempre o conduziu sem que se assumisse, sumiu. Os cardumes magicamente perdiam sua unidade e seus integrantes caiam em todas as direções, sendo no caminho mortos e escamados e esquartejados e enrolados em arroz grudento e algas. As sobras sem arremate tensionavam-se e os corais coloridos desintegravam-se em linhas lisas que, desamparadas, buscavam seus novelos numa corrida tão sem rumo que embolavam-se em nós eternos. As coisas gordas e luminosas comparáveis a marshmallows secaram-se em tripas escuras por osmose, morrendo ao se render ao meio. Os muitos, poucos e não-olhos fecharam-se descontentes, numa longa piscadela sem volta. Do guache fez-se o nanquim, manchando a vida de morte. Uma luz cegou-o. Viu que o lustre iluminava o triste cenário destruído por ele mesmo. Nadou o fugitivo. Esforçava-se em seguir a fonte que o iluminava, e quanto mais se aproximava mais via a silhueta negra do barco que desejava.


A luz que o cegava era tão negra quanto nas abissais oceânicas.
A pressão era tão grande quanto no fundo imaginado de qualquer mar.
O ar era tão escasso quanto num afogamento.
Jorrou do impacto um gêiser de lágrimas, irrompida a divisão com a superfície.


Habituou-se à luz, à pressão, ao ar. Sempre habituou-se a tudo.
As proporções o remetiam às lembranças ensinadas de normalidade.
O jorro lacrimal apenas pingava agora.


O barco era a cama.
Subiu, subjugado ao destino assumido.
Rolou as cobertas,
subiu a menina,
deslizou em seu colo,
encontrou sua corrente,
prendeu-se a ela.


E o peso do mundo no colar da menina a acordou.

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